(Festival do Rio) O Agente Secreto: Refúgio, identidade e memória

O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, é um daqueles filmes que você entra com uma expectativa, mas vê que o caminho é diferente. Por isso, é uma experiência que você precisa estar de braços abertos e entender que temos passado e presente na mesma sintonia. Vamos falar tudo sobre O Agente Secreto:
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Refúgio, identidade e memória:
Sim, eu vou começar a reforçar o motivo do título dessa crítica. Pois Kleber Mendonça Filho exibe aqui uma ambição dupla. Ou seja, recuperar historicamente o clima dos anos 70 brasileiros sob autoritarismo, e ao mesmo tempo fazer um filme carregado de atmosfera, tensão visual e presença sensorial. O diretor aproveita a sua narrativa um exercício de reconstrução do passado quanto uma reflexão sobre o peso desse passado no presente, sobre quem somos porque fomos o que fomos.
A memória, nesse filme, assume múltiplas camadas, desde a familiar, social, afetiva e histórica. Marcelo, o protagonista interpretado por Wagner Moura, volta para Recife em busca de sua mãe, de seu filho e de documentos que comprovem origens e traumas que se perderam no tempo. Não é só uma volta geográfica, mas uma jornada interna, atravessada por lacunas, silêncios, ruídos, aparições fantasmáticas ou míticas, como a Perna Cabeluda ou outras fabulações regionais que se insinuam.
Esses elementos folclóricos ou surreais revelam que a memória não é simplesmente registro, mas construção: aquilo que resistiu, aquilo que fomos obrigados a esquecer, aquilo que nos ameaça ou nos conforta. A memória pública, política, está presente nas marcas da repressão, na vigilância, na corrupção silenciosa, no medo espalhado.

E o refúgio não é só um ato político:
Essa busca por identidade se entrelaça com a noção de refúgio. Marcelo não retorna com a expectativa de encontrar um retorno puro, livre de risco, mas busca um lugar, físico e simbólico, onde possa se ver, ser reconhecido, reconectar-se com sua história. Ele espera uma cidade ou uma comunidade que o acolha, mas o Recife que encontra está sob vigilância, sob sombra de corrupção e poder. O refúgio, então, é instável: ele se camufla, assume nomes falsos, busca esconderijos, alianças discretas, vínculos com vizinhos, moradores de edifícios como o Edifício Ofir, pessoas que se organizam, resistem, protegem uns aos outros. O refúgio aqui não é isolamento, mas uma rede de solidariedade que floresce no espaço urbano e no cotidiano sob pressão.
Nesse sentido, a identidade se revela fluida, marcada pelo trauma, pelas identidades impostas (da repressão, da vigilância, do Estado), pelas identidades ocultas ou fragmentadas (nome falso, memórias truncadas, origens mestiças ou indígenas silenciadas). Marcelo tenta juntar essas partes: saber quem era sua mãe, qual seu passado, qual a verdade por trás dos documentos, compreender o que foi apagado ou distorcido. A identidade pessoal se torna inseparável da identidade coletiva. Não há como desvincular a história de Marcelo da história do Brasil, da ditadura, das cicatrizes que se carregam.
Um elenco que só valoriza a obra:
Wagner Moura está no centro desse drama, como Marcelo, um homem marcado, dividido entre passado e presente, dúvida e determinação. Aliás, o ator constrói o personagem com uma fisicalidade contida que comunicam melhor que qualquer fala o terror de ser descoberto e o desejo de reencontro consigo mesmo. A sua performance é feita de contenção e de tensão. O corpo dele parece sempre em estado de alerta, como se a memória fosse também uma armadilha. Quando o personagem tenta se refugiar, o espectador percebe que esse refúgio não é um lugar, mas um estado precário entre a mentira e a lembrança.Ele carrega o peso da narrativa e faz sentido ter sido o vencendor em Cannes como Melhor Ator.
Mas, o elenco de apoio tem o seu brilho individual, mais do que contribuindo para preencher lacunas dramáticas e dar densidade ao mundo retratado. Carlos Nascimento, que vive Seu Alexandre, sogro do protagonista e projecionista até a promissora Alice Carvalho, em uma pequena participação, mas tão acachapante quanto os personagens tão vivos e ricos do filme, como os capangas vividos por Gabriel Leone e Roney Villela em busca do extermínio de Marcelo. No entanto, o destaque foi para Tania Maria, que interpreta Dona Sebastiana, que representa o acolhimento e resgata um lado mais humano para a história.

A mistura única de gêneros:
A grande força do filme reside justamente na forma como Kleber consegue misturar gêneros, suspense, thriller político, ação, comédia. Sem que isso pareça mera colagem, mas sim uma articulação que serve ao tema. Há momentos tensos, de perseguição, de medo. Mas, também tem aquelas situações onde o humor quebra a nossa expectativa. Na verdade, a comédia surge nos interstícios, nos personagens secundários, nas bizarrices do cotidiano, em momentos de estranhamento que nos fazem rir, ou ao menos sorrir com nervosismo.
A obra coloca-se como um espelho: o passado da ditadura que ele recria serve para iluminar o presente. As tensões da repressão, a dúvida, o medo, o apagamento da memória, as disputas de narrativa política. Tudo isso ecoa nos dias de hoje, em discursos autoritários, na invisibilização de minorias, no desprezo de certas histórias regionais ou culturais. O filme, ao mesmo tempo que revisita 1977, nos força a perguntar: que memórias queremos guardar? Que identidades queremos reconhecer? Onde encontramos refúgio quando a estrutura do poder ameaça não só o corpo, mas a própria narrativa de quem somos?
Vale a pena assistir O Agente Secreto?
De fato, O Agente Secreto não é apenas uma chama de alegorias políticas, mas sobre o que se perde quando um país escolhe esquecer e sobre o poder de lembrar, mesmo quando tudo parece empurrar para o silêncio.Com toda a certeza, é um dos filmes mais emocionantes e politicamente relevantes do cinema brasileiro recente. Visualmente belo, narrativamente corajoso e com uma atuação monumental de Wagner Moura, é o tipo de obra que fica na cabeça por dias. Ou seja, faz sentido ser o escolhido para representar o Brasil no Oscar 2026.




